Os precedentes constitucionais estão num ringue?

Artigo publicado no conjur.com.br

Numa rápida pesquisa na aba de jurisprudência do site do Supremo Tribunal Federal1, indicando como critério o número do Recurso Extraordinário 851.108, o leitor perceberá que são encontrados 32 resultados.
A análise dos processos que tem o referido recurso extraordinário como indexador, demonstra que, na grande maioria, são decisões prolatadas em Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), cujos acórdãos foram publicados no ano de 2022.
Por que esses dados são motivo para despertar atenção e justificar a elaboração do presente artigo? Pelo contexto em que essas ADIs foram propostas e julgadas.
Em junho de 2015, o Supremo Tribunal Federal, no recurso extraordinário adrede mencionado, reconheceu a repercussão geral da discussão a respeito da exigência de ITCMD em casos envolvendo conexão com o exterior. A questão ali posta objetivava dar uma resposta à seguinte pergunta: a ausência de norma geral em matéria tributária veiculada por Lei Complementar autoriza que os Estados e o Distrito Federal exerçam sua competência tributária para instituir o ITCMD nas hipóteses de bens localizados no exterior, bem como doador ou de cujus domiciliados ou residentes no exterior?
Pois bem, em março de 2021, o recurso foi julgado em seu mérito reconhecendo a necessidade da intercalar Lei Complementar dispondo sobre norma geral em matéria tributária para que Estados e Distrito Federal possam exercitar a competência outorgada no artigo 155, § 1º, III da Constituição Federal/1988.2 Ocasião em que foi fixada a seguinte tese:

“É vedado aos estados e ao Distrito Federal instituir o ITCMD nas hipóteses referidas no art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal sem a intervenção da lei complementar exigida pelo referido dispositivo constitucional.”

Muito embora a mola propulsora do questionamento tenha sido o caso de um contribuinte sujeito à legislação do estado de São Paulo, a questão posta e solucionada pelo STF envolveu praticamente todos os estados da federação brasileira, já que a maioria deles tinham legislação específica instituindo a regra-matriz de incidência
tributária do ITCMD3 conexão exterior, mesmo diante da ausência de lei complementar tratando da matéria.4

Ao reconhecer a repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal pretendeu julgar a questão posta em discussão para aplicar a decisão a todos os casos pendentes e futuros que tratassem da mesma questão. Isto porque, admitida a repercussão geral da matéria, o controle de constitucionalidade passa a ser objetivo, isto é, de uma específica questão, permitindo que o acórdão proferido pela Suprema Corte atinja todos os casos que tenham o mesmo objeto.
Afirmação essa que pode ser construída a partir da conjugação do quanto disposto nos artigos 1.030, I, “a”5 e 1.035, § 5º6 e 1.040, I, II e III7, todos do CPC/2015.
Tanto é que, nos julgamentos sob a sistemática da repercussão geral, 2 (duas) diferentes decisões são proferidas: uma de caráter geral, aplicável a todos os casos que envolvam aquela mesma questão, e outra, específica para o caso concreto, objeto do recurso que deu origem ao julgamento.
Por isso que, embora o Recurso Extraordinário 851.108 tenha sido originado de discussão do estado de São Paulo, a questão nele resolvida se aplica aos processos que tenham como objeto a legislação de ITCMD-conexão exterior de todos os demais estados.
Esse é o efeito próprio e buscado pelo sistema de precedentes: uma decisão proferida em recurso extraordinário, de caráter transubjetiva, que possa solucionar todos os casos que envolvam a mesma questão, garantindo, com isso, uniformidade, coerência e estabilidade8

No contexto do sistema de precedentes, uma vez proferida a decisão no Recurso Extraordinário 851.108, deveria restar coibida a exigência de ITCMD nas hipóteses do art. 155, § 1º, III, da Constituição Federal, assim como deveriam todos os Tribunais de Justiça aplicá-la aos casos que tratam do tema, conforme disposto nos artigos do CPC antes indicados. Enfim, a decisão no RE deveria encerrar qualquer discussão a respeito
do ITCMD-conexão com o exterior, afinal é para isso que se forma um precedente vinculante de efeito transubjetivo, não?
Contudo, o que se viu, foi a propositura, pela Procuradoria Geral da República, de 22 ADIs9 (isso mesmo leitor, 22!), tratando do mesmo tema, buscando em cada uma delas a declaração de inconstitucionalidade da lei editada por cada um dos estados e do Distrito Federal instituindo regra-matriz de incidência do ITCMD conexão com o exterior.
O curioso foi que o ajuizamento dessas ações se deu em momento posterior ao julgamento do recurso extraordinário – RE julgado em 01/03/2021 e ADIs propostas em 03/05/2021.
Parece pertinente pensar que a intenção com a propositura das referidas ADIs foi estancar a produção de efeitos dos dispositivos das leis estaduais e do Distrito Federal que consagrados inconstitucionais após a decisão no Recurso Extraordinário 851.108.
Especialmente pelo fato de que a oposição de embargos de declaração contra o acordão poderia retardar o cumprimento e a aplicação do precedente.

Louvável, neste aspecto, a postura adotada pela PGR. Por outro lado, tal providência demonstra uma evidente distorção, quiçá incompreensão pragmática, na sistemática de precedentes implementada pelo CPC/2015. Ora, precedente é toda decisão judicial, produzida sob o procedimento especificado pela CF e/ou pelo CPC/2015, cujo conteúdo (aspecto material) tem aptidão para ser aplicado aos casos pendentes e futuros que tenham o mesmo objeto, assumindo natureza vinculante.10

Mas se assim o é, e a decisão vinculante proferida no recurso extraordinário 851.108 foi proferida em primeiro lugar, produzindo um norma geral reconhecendo a necessidade de Lei Complementar prévia à edição das leis estaduais e do Distrito Federal para tratar do ITCMS conexão com exterior, não haveria razão para o ajuizamento das ADIs.
Há, a nosso ver, falta de interesse de agir11 no ajuizamento dessas ações, pois o objeto nelas em discussão já foi resolvido. Ou seja, não haveria mais objeto litigioso a ser solucionado pelo Supremo Tribunal Federal, pois não há mais controvérsia a respeito da questão, uma vez que foi fixada a norma de competência a respeito do ITCMD conexão exterior afirmando-se a necessidade de prévia Lei Complementar.
Nem mesmo o fato de que, por meio da ADI os efeitos da lei declarada inconstitucional são imediatamente cessados, pode ser dado como fundamento para tal comportamento do PGR, pois, a decisão proferida no RE com repercussão geral tem o mesmo alcance da ação de controle concentrado de constitucionalidade: se há
necessidade de Lei Complementar para que o ITCMD conexão com exterior possa ser exigido e ela não existe, inegavelmente todas as leis estaduais e do Distrito Federal são inconstitucionais.
Aliás, pensamos, que o conteúdo da decisão em recurso extraordinário com repercussão geral tem um alcance maior do que a decisão em ADI, porque nessa o julgamento afeta uma lei ou dispositivo específico, enquanto naquela pode-se afetar diversas leis de uma única vez, como ocorreu no tema aqui tratado. Não importa a lei
analisada, mas a questão decidida.
É passada a hora do sistema de precedentes ser mais bem compreendido e aplicado, inclusive para se chegar ao objetivo de redução do volume de processos nas Cortes Superiores.
Situação como a aqui analisada gera manifesto descrédito no sistema de precedentes, deixando dúvida se a efetividade na prestação da tutela jurisdicional e a redução do acervo irão materializar-se.

  1. https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&p
    ageSize=10&queryString=851108&sort=_score&sortBy=desc
    ↩︎
  2. Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
    I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;
    § 1º O imposto previsto no inciso I:
    III – terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:
    a) se o doador tiver domicilio ou residência no exterior;
    b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no
    exterior; ↩︎
  3. Imposto sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos. ↩︎
  4. A referência é ao: Pernambuco, Rondônia, Paraíba, Rio de Janeiro, Maranhão, Rio Grande do Sul,
    Tocantins, Alagoas, Amazonas, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo,
    Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Piauí, Santa Catarina e Distrito Federal. ↩︎
  5. Art. 1.030. Recebida a petição do recurso pela secretaria do tribunal, o recorrido será intimado para
    apresentar contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual os autos serão conclusos ao presidente
    ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá:
    I – negar seguimento:
    a) a recurso extraordinário que discuta questão constitucional à qual o Supremo Tribunal Federal não
    tenha reconhecido a existência de repercussão geral ou a recurso extraordinário interposto contra acórdão
    que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no regime de
    repercussão geral; ↩︎
  6. Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso
    extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste
    artigo.
    § 5º Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão
    do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão
    e tramitem no território nacional. ↩︎
  7. Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma:
    I – o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem negará seguimento aos recursos especiais ou
    extraordinários sobrestados na origem, se o acórdão recorrido coincidir com a orientação do tribunal
    superior;
    II – o órgão que proferiu o acórdão recorrido, na origem, reexaminará o processo de competência
    originária, a remessa necessária ou o recurso anteriormente julgado, se o acórdão recorrido contrariar a
    orientação do tribunal superior;
    III – os processos suspensos em primeiro e segundo graus de jurisdição retomarão o curso para
    julgamento e aplicação da tese firmada pelo tribunal superior; ↩︎
  8. Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. ↩︎
  9. Foram identificadas as seguintes ADIs: estado do Pernambuco – ADI 6817; estado de Rondônia – ADI
    6824; estado da Paraíba – ADI 6822; estado do Rio de Janeiro –ADI 6826; estado do Maranhão – ADI
    6821; estado do Rio Grande do Sul – ADI 6825; estado de Tocantins – ADI 6820; estado de Alagoas –
    ADI 6828; estado do Amazonas – ADI 6836; estado do Paraná – ADI 6818; estado de São Paulo – ADI
    6830; estado de Minas Gerais –ADI 6839; estado do Amapá – ADI 6837; Distrito Federal – ADI 6833;
    estado da Bahia – ADI 6835; estado do Ceará – ADI 6834; estado do Espírito Santo – ADI 6832;
    estado de Goiás – ADI 6831; estado do Mato Grosso – ADI 6838, estado do Mato Grosso do Sul – ADI
    6840; estado do Piauí – ADI 6827 e estado de Santa Catarina – ADI 6823 ↩︎
  10. Spina, Vanessa Damasceno Rosa. Estabilidade, integridade e coerência dos precedentes em matéria
    tributária. XXI Congresso Nacional de Estudos Tributários: reforma tributária brasileira: valores e
    contravalores. org. Priscila de Souza; coord. Paulo de Barros Carvalho, 1. Ed., São Paulo. Ed. Noeses,
    2024, pg. 1337 a 1355 ↩︎
  11. CPC: Art. 17. Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade. ↩︎

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